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Por:   Pedro Branco                    


    Era uma vez, numa região deste país à beira-mar urbanizado, um presidente de junta de uma terriola qualquer. Este presidente era uma pessoa simpática, 1.80 metros de altitude, cabelos já bem grisalhos, pois 50 anos de preocupações já davam para tingir bem o coiro cabeludo. Tinha a sua barriga de cerveja, mas não muito proeminente pois não era pessoa de se andar a enfrascar. Olhos castanhos com óculos por cima devido à leitura de muitos "Correio da Manhã", uma ou outra ponta de reumático, nariz aquilino eram outros dos seus atributos físicos1. Acontece que o senhor U.D.P. (não vou revelar o nome, não por ser alguém conhecido, mas sim porque não interessa para o assunto) era viúvo. A sua esposa morreu cedo, sendo que além de lhe deixar os terrenos que eram de seu pai e uma boa maquia de numerário, deixou-lhe uma pequena filha, a quem chamavam de Branca de Cocaína Mesmo, devido à cor da sua pele ser de uma brancura tão pura, que fazia lembrar toda a cocaína que não leva farinha. BCM (vou lhe chamar assim para não estar sempre a escrever aquele gandanome) cresceu junto com os mandatos do pai à frente da freguesia. Ora, apesar do pai ser uma boa pessoa e de esquerda, o trabalho acumulado pela Junta só lhe deixava o tempo mínimo para acompanhar a sua filha à hora das refeições e um fim-de-semana ou outro juntos. Mas BCM, que era tão pura como a sua beleza, compreendia a situação e não deixava de amar o pai por isso 2. Com o tempo, BCM tornou-se numa rapariga formosa, e quando atingiu os 18 anos podia-se dizer que era orgulho da aldeia, a hóstia das beatas, a mangueira do bombeiro e, sobretudo, a erecção dos rapazes. De facto, BCM tinha-se tornado no que se pode chamar de uma "gaja muita boa". Cabelos castanhos compridos que tinham um toque de seda, seios que se podiam instalar num volante qualquer, sendo que depois até o condutor tinha vontade de provocar o acidente, uma cintura de vespa, um traseiro com todas as medidas no lugar e com indícios de que a celulite só devia aparecer por volta dos anos 50. Este quadro talvez nos dê a imagem de uma rapariga fútil que passe o tempo numa daquelas lojas daquelas grandes cadeias de moda espanholas, ou em artérias comerciais, ou em centros comerciais, ou em sítios de animação nocturna onde não se faz nada senão dores de cabeça e vómitos. Ora, BCM não era destas, porque para já na aldeia a única loja de roupa que havia era o mercado mensal, a única coisa que se podia chamar de centro comercial era mercearia da Ti M.3, onde além de comida e detergentes, vendia-se também preservativos (a Ti M. Pensava que eram uns balõezinhos que os miúdos gostavam tal era a quantidade que via nas ruelas da cidade quando ia lá visitar a prima), animação nocturna era a tasca do C.4, onde em noite de futebol as mulheres não entravam, pois tinham medo de ser violadas com uma garrafa de "Cristal". Apesar de tudo, BCM era uma rapariga actualizada, pois quando o pai tinha que ir à sede do concelho, normalmente levava a filha, dando-lhe dinheiro para ela gastar com ela.

     No entanto, eis que aparece um súbito revés neste discorrer harmonioso da vida destas duas pessoas que tenho vindo a descrever. O senhor U.D.P., apesar de tudo lhe correr bem na vida, tinha um pequeno vazio no coração (não, não sofria de problemas de circulação...) deixado pela morte da sua esposa, pela qual muitas vezes suspirava. Assim estava sujeito a levar com uma ferroada daquele puto gordo, louro, nu e com asas (ouve man, ganda freak!...) cujo nome é uma coisa mais ou menos igual a escarro. E pelos vistos foi alvejado, quando a aldeia ganhou uma nova habitante. Esta nova habitante era a senhora B.M.( não, não tinha nenhum carro de origem alemã), uma viúva com uma idade similar à do senhor U.D.P., vinha da morte suspeita do seu terceiro marido, um comerciante na baixa da sede de concelho. O senhor acordou na sua última manhã de vida com a cabeça a cinco metros do pescoço (a polícia ainda está à espera do resultado da autópsia ...). O segundo marido (bancário quase no topo da carreira)teve uma melhor sorte, foi encontrado na sua garagem amarrado ao banco do carro, sendo que este esteve a trabalhar durante toda noite (a polícia nada disse, pois pensaram que ele também fosse ilusionista). O primeiro marido morreu da forma mais ortodoxa, foi encontrado com uma bala na cabeça, mas sem uma arma por perto (a polícia pensou que ele escondeu a pistola ( ainda hoje por encontrar) depois de se matar, declarando o caso como suicídio). A senhora B.M. tinha ainda a mania que era nova, o que se via pelas ultra-mini-saias que faziam ver a celulite que escorria das nádegas, um decote que deixava ver uns seios já descaídos ao nível dos joelhos ( e que caminhavam a passo largo para os pés), umas blusas justas que deixavam ver a larga pança provocada pelos problemas intestinais e consequentes gazes, sapatilhas (mas neste caso é porque os sapatos não aguentavam com os joanetes de dez centímetros de diâmetro), cabelo mil vezes pintado de mil cores, que mais parecia um anúncio qualquer da Benetton ou então um tributo ao movimento hippie. Esta ilustre menina tinha vindo para a aldeia de forma a não receber muitas "atenções" devido á morte do marido. Calhou que num desses primeiros dias de estada na aldeia, ocorresse um baile promovido pela Junta, com um acordeonista, comes, bebes e pensos rápidos, ao qual decidiu comparecer. Tal era a beleza desta nova personagem, que ficou sozinha enquanto o baile decorria, ficando a empanturrar-se com rissóis, pataniscas e carrascão. O senhor U.D.P., que era um homem de esquerda, logo defendia igualdade para todos, e como estava sem ninguém, por opção pessoal e profissional, decidiu dar a oportunidade à senhora B.M. de também dar o seu pézinho de dança. A senhora B.M. aproveitou a oportunidade e trocando conversas com o senhor U.D.P., reparou que ele poderia ser um bom "partido" para ela5. De súbito, a senhora B.M. disse que tinha de ir á casa-de-banho.

    Tinha começado o malvado plano da caçadora de dotes. Na casa-de-banho aproveitou para tirar da mala um daqueles indicadores de gravidez que se compra nas farmácias, mas este já usado e que serviu para indicar há dez anos antes que ela teria de fazer o seu décimo oitavo aborto. Agarrou nele e voltou de novo para o salão do baile onde se dirigiu ao senhor U.D.P. e disse-lhe:

- Ai, U.D.P. . Estou grávida!

    O senhor U.D.P., que tinha travado conhecimento com a senhora B.M. à coisa de cinco minutos, ficou surpreendido com a maneira como foi abordado pela nossa "menina".

- A senhora desculpe, nem chegou a cinco minutos o tempo que estive a dançar, não a conheço de lado nenhum e a senhora agora trata-me por tu e diz-me que está grávida!!! Mas que confiança esta? Tudo bem que a senhora tenha tido algum deslize com um homem qualquer, mas penso que eu não seja a pessoa indicada para lhe dar o apoio indicado neste momento.

- Mas U.D.P., a criança é tua. Fui agora à casa-de-banho e fiz o teste. Estou grávida de ti e mostrou-lhe o indicador de gravidez perante a estupefacção de U.D.P. .

- Mas como! Então eu só dancei consigo!

- Sim, mas foi mágico, não foi? E além disso, não queres que eu diga agora de repente que estou grávida de ti.

- Ora eles não iriam acreditar só porque estive a dançar consigo.

- Sim, mas não te esqueças que foste a única pessoa a dançar comigo. Ora, isso pode pressupor um conhecimento anterior, que só não foi consumado anteriormente, devido às tuas atribuições como organizador deste baile.

    O senhor U.D.P., sobretudo não queria escândalo, pois não tinha habilitações suficientes para outro emprego que lhe desse um salário equivalente ao que ganha enquanto presidente da Junta, decidiu levar a senhora B.M. para casa, sendo que mais tarde investigaria todo aquele caso com maior cuidado.

    BCM tinha ficado em casa naquela noite, pois como já se fez referência antes nesta narrativa era uma rapariga com um certo bom senso, pois não lhe apetecia passar a noite a levar apalpadelas e ouvir galanterias como "és boa como o milho", "comia-te toda" ou então o melhor de todos "quando estiver a afogar-me, deixa-me agarrar-te". Ficou surpresa quando viu o pai a entrar com aquele espantalho da senhora B.M. . Esta reconheceu logo a inteligência e a beleza de BCM, ficando logo de pé atrás com ela, sentimento recíproco de BCM. O pai chamou BCM à parte e explicou-lhe a situação. Claro que BCM percebeu logo a jogada e viu a posição delicada do pai. Depois, foram todos dormir pois tinham sido demasiadas emoções para última meia hora, especialmente para o senhor U.D.P. .

    No dia seguinte, enquanto BCM tinha ido para o liceu, a senhora B.M. foi ao quarto dela tentar pescar truques que lhe permitissem ter uma beleza igual à da filha do seu noivo. Sim, noivo, pois caso U.D.P. não aceitasse o pedido de casamento de B.M.6, o escândalo viria para as ruas. Foi ao guarda-roupa de BCM e tentou-se vestir por inteiro com a roupa de BCM, mas o resultado foi este: ao por o soutien teve que enrolar os seios até acima para poder encher o espaço, as cuecas com aqueles rendilhados frágeis viram-se rasgadas com a podridão nauseabunda que ia no baixo ventre da (agora já se pode dizer) vilã. A blusa rasgou-se contra a pança cheia de gazes, a saia não comportava a largura, aliás não era bem largura era mais envergadura, os sapatos faziam os joanetes arrebentar e, em relação à maquilhagem, BCM não a tinha, pois não precisava dela, tal era sua beleza, o que desagradou a B.M.(penso que ela já não tenha o direito de ser chamada de senhora) que tinha que pôr quilos de creme na cara logo pela manhã. Desistindo disto tudo, B.M. decidiu ir tomar o seu banho semanal, sendo que quis utilizar o shampoo e o gel de banho, o que viu que não era possível, sendo que teve de se lavar com o habitual detergente da loiça, tal era a gordura solidificada em que se tinha tornado o seu corpo.

    BCM tinha agora voltado da escola, encontrando a sua futura madrasta semi-deitada no sofá a ver a telenovela venezuelana que estava a passar na TVI ou na RTP1 (tanto faz, é praticamente a mesma coisa) sorvendo com rapidez um metro de cerveja quente e comendo snacks de queijo das promoções, envergando uma blusa roxo claro e uma mini-saia verde alface com uns toques de amarelo limão, estando os pés a repousar numa almofada e os joanetes noutra. BCM viu que ali não havia mais que ganância, perfídia e um grave caso de obesidade não assumida e dirigiu-se de pronto a ela:

– Você, não está grávida, pois não?! É que com essa idade, já parece ser um pouco impossível conseguir tal proeza ... principalmente quando só é preciso dançar com o pai da criança!

– Mas, filha, - pondo um tom maternal na voz – é verdade. Olha – indicando-lhe o indicador de gravidez.

    BCM examinou cuidadosamente o indicador de gravidez e quase a claudicar, apesar de saber improbabilidade do pai ser o pai da criança, reparou numa inscrição milimétrica onde dizia "expira a 07/92". De súbito, deu-se um volte-face no ânimo de BCM que aproveitou para contra-argumentar:

– Conheceu o meu pai há oito anos? Não sabia ...

– Dá cá isso! – A voz de B.M. mudou subitamente de maternal para infernal, arrebatando o indicador de gravidez das mãos de BCM com uma velocidade meteórica - Achas-te muita esperta, não é? Pois nem penses em abrir a boca, senão nem sabes o que te faço!

    B.M. tinha sido muito intimidante naquele momento, o que provocou uma sensação de medo em BCM. Apesar disto estava disposta a contar o que tinha visto ao pai. À hora da refeição dirigiu-se ao pai.

– Pai, tenho uma coisa para lhe dizer ...

– Diz lá, filha.

     Mas nesse momento, BCM sentiu um olhar faiscante por parte da futura madrasta e nada disse, o que causou o espanto do pai.

– Então não ias dizer alguma coisa?

– Ah, esqueci-me. Mas deixa estar, não era nada de importante. – mal tinha acabado de proferir esta frase, olhou de soslaio para a futura madrasta, que também fazia o mesmo trejeito à futura enteada.

    No dia seguinte, o senhor U.D.P. anunciou que iria no fim-de-semana a Lisboa participar numa mega-manifestação do Poder Local contra o centralismo do Terreiro do Paço. Foi neste momento que B.M. decidiu seria a altura ideal para se ver livre da sua futura enteada. Telefonou para uns primos seus, que tinham reputação de serem rapazes para todo o serviço, pedindo-lhes o favor de raptar BCM.

    No Sábado, ia BCM pelas ruas da aldeia à padaria comprar o pão para si e para a sua indesejada companheira, quando de súbito saltam da esquina dois camafeus de um metro e noventa cada um, cabelo oleoso, barba por fazer, fiozinho de oiro, camisa desfraldada, sapatos de ir à uva e cigarro sem filtro ao canto da boca cariada, que, de pronto agarraram BCM e enfiaram-na dentro duma carrinha ferrugenta da era dos afonsinhos, mas que não estava nem homologada pelo Clube Português de Automóveis Antigos, nem por uma seguradora e nem por um centro de inspecções periódicas obrigatórias. Atiraram-na para dentro da cabine de carga, onde há dois dias tinham posto estrume que tinham roubado, e seguiram para a sede do concelho ao som duma cassete pirata de Toyn (nessa cassete havia um dueto com a famosa artista da rádio e da televisão, Ácadela), enquanto BCM mal conseguia respirar dentro duma saca de batatas, que já tinha muitos anos de uso e, especialmente, de cheiros. Chegados á sede de concelho, os dois primos da pérfida B.M., viraram em direcção ao mais conhecido bairro de lata de lá, onde sexo, drogas e hip-hop eram o pão nosso de cada dia. Pararam e descarregaram BCM, abandonando-a naquele lugar inóspito.

    BCM viu-se sozinha, sem dinheiro, num lugar estranho, rodeada por gente duvidosa, sendo que o perigo espreitava a cada esquina. Apesar de tudo, e sabendo que parada é que não resolvia nada, decidiu procurar a saída daquele emaranhado de ferro, zinco e esgotos a céu aberto. Mas cada vai a sair ouve um grupo a cantar:

- Eu vou, eu vou, injectar-me agora eu vou. – Era um grupo de sete drogados que viviam no bairro, numa bizarra habitação composta por bidons, capots e um vaso de flores (com cannabis semeada ...). Ao aperceberem-se da presença de BCM, ficaram estupefactos. Julgavam ter visto cocaína em forma humana . Um saltou logo e disse:

- É pá, deixem-me snifá-la. Ouve man, deve dar cá uma ganda moca!...

    Um companheiro travou-o, pois apercebeu-se que BCM era de facto uma pessoa. BCM ficou assustada, pois o máximo de gandulagem que havia lá na aldeia eram três gajos de vinte anos que andavam a fazer o sétimo ano e circulavam numas motorizadas portuguesas com escape livre, divertindo- se a azucrinar a população da aldeia com o barulho das motos e a apanhar bebedeiras descomunais nas festas da aldeia. Contudo, estes drogados eram quase todos filhos de gente humilde e ainda conservavam alguma decência na maneira de ser, sendo no fundo boas pessoas a quem a sociedade os vitimou com os seus tentáculos de competição. Dirigiram-se a ela, perguntando-lhe donde vinha, o que fazia, porque é que estava ali, etc. Ela respondeu, perdendo o medo a pouco e pouco, vendo que neles não havia maldade, mas sim desgraça. Eles eram sete rapazes muito sui generis. O primeiro era o Dread, cerca de 20 anos, cabelo castanho claro aparado por uma máquina de barbear, mas que estava a voltar a crescer, pois ainda não tinha roubado pilhas novas para a máquina. Tinha os olhos semi-cerrados, fruto da moca constante que era a sua vida, um ou outro dente podre, pois só pasta de dentes não chega, é também preciso água e uma escova própria, pois a escova do cabelo não dava conta do recado. O seu principal meio de sustento era o pequeno furto em zonas de grande movimento de animação nocturna, aproveitando o facto das pessoas andarem a pavonear os seus haveres mais preciosos nessa altura. O segundo era o Hong-Kong. O Hong-Kong era vítima do capitalismo desenfreado provocado pela vaga de restaurantes chineses que assolou a sede do concelho. Os pais, chineses (o Hong-Kong já nasceu cá), viram o seu restaurante falir depois de se ter acabado o stock de cães e gatos vadios da sede de concelho, decidindo praticar uma acção digna do Japão, esse país ultra-moderno e exemplo para todas as nações no mundo. Ou seja, cometeram harakiri ... O Hong-Kong ficou assim sozinho no mundo, decidindo iludir a sua desgraça com o pó mágico, cura de todos os males. Tinha 18 anos, um corte de cabelo completamente desarranjado como mando a um bom chinês, figura enfezada, olhos em bico que agora estavam pontiagudos devido ao efeito do estupefaciente, trocando sempre os erres pelos éles sempre de camisola de alças, sendo a sua artimanha para arranjar dinheiro a seguinte: sentava-se num passeio, tendo à sua frente um improvisado chapéu vietnamita e tocando supostas melodias chinesas num instrumento de cordas imaginado pela improvisação. Quando as pessoas se agachavam para deixar uma moeda no chapéu, o Hong-Kong fazia uso da única coisa que tinha interesse em saber da cultura chinesa, artes marciais, pregando um grande pontapé no focinho da alma caridosa, pondo-o K.O. e fugindo com a carteira da vítima. O terceiro era o Riscos e Rabiscos. Este era o mais velho do grupo, contava 25 invernos, tinha o cabelo mais desgrenhado que se podia imaginar, parecendo que estava a pingar azeite, a barba por fazer, blusão e calças de ganga ultra-surrados, sapatilhas de lona com entradas de ar. Os Riscos e Rabiscos ganhara o seu apelido através do meio pelo qual ganhava dinheiro para sustentar o vício; era arrumador de carros. Quando os "clientes" não davam a devida recompensa pelo seu trabalho, ele assinalava o carro que não tinha pago "imposto de estacionamento" com uns desenhos feitos com o seu lápis de ferro. Claro que Riscos e Rabiscos (RR) respeitava a escala hierárquica da sociedade que o tinha atirado para o parque de estacionamento; quando era um carro de alguém com posses que não pagava, RR fazia uma reprodução qualquer de uma obra de Picasso ou Dalí, enquanto se fosse um carro do Zé Ruela, com condições pouco melhores que as do RR, este fazia meramente representações de Mondrian ou Warhol. O quarto elemnto do grupo era o Usmiminu. O Usmininu, 20 anos, era negro, filho de um casal de angolanos que tinham vindo clandestinamente para Portugal dentro do porão de carga de um avião que trazia uma leva de retornados dessa ex-colónia. Quando deram com os pais do Usmininu, os funcionários do serviço que davam assistência aos retornados, devido ao excesso de trabalho em mãos na altura, mandaram-nos também a eles para a pousada da recém-extinta FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, actual INATEL) na Caparica. Contudo, quando na Caparica os retornados acharam os pais do Usmininu a viver junto com eles, pregaram-lhes uma valente coça, como que em jeito de "retribuição" pelo o que os seus compatriotas haviam feito com eles, expulsando-os para a Trafaria, onde iriam morar para as celas do forte daquela localidade, desactivado após o 25 de Abril, juntando-se assim a vários negros que já tinham sido "convidados" a habitar aquele condomínio. O Usmininu nasce assim num ambiente de cimento, suor , sangue, exploração e pobreza. Mas aquilo era um ambiente integrado ... na paisagem. Quando foi para a escola, o Usmininu levou na sua mente conceitos que elementos mais radicais do "condomínio" haviam posto a lume sobre os seus congéneres brancos. Assim, e junto com um ambiente hostil aos de cor diferente da cor padrão, a escola passou a ser para Usmininu e para mais uns quantos jovens da sua condição um palco de movimentação contra o "opressor colonialista", como diziam os elementos mais rancorosos do "condomínio". Posto isto, o Usmininu aprendeu melhor na escola como manejar uma arma ou técnicas de assalto do que ler e escrever (até à data o Usmininu tinha o 3ºano de escolaridade). A sorte do Usmininu é que tinha jeito para jogar à bola, jogando numa colectividade nascida do interior do "condomínio, que estava cada vez maior, sendo que aos 18 anos partiu para a região da nossa BCM, para jogar num clubezeco de última categoria perto da freguesia presidida pelo pai da nossa BCM. Só que o treinador desse clube era também o traficante de serviço dessa aldeia, e vendo no Usmininu a instrução necessária para lhe comprar o produto, apresentou-lhe este como uma farinha energética. O Usmininu, coitado, caiu nesta, e ao segundo jogo já marcava auto-golos com grande estilo, fruto da grande moca com que diariamente andava. Expulso da equipa e com dinheiro suficiente ou para o vício ou para o regresso à margem sul natal, o Usmininu optou pela primeira, assinando o seu visto de permanência na região de BCM. A forma que Usmininu encontrou para sustentar o vício foi de índole honesta (e ainda hoje continua a ser), passando a criar pequenos tambores típicos de África, fazendo-os com pele de cães vadios que matava na rua, fazendo a armação com os seus ossos, cobrindo-a com papelão que encontrava no chão e que de vez em quando passava por poças de água, para dar alguma tonalidade. O quinto era Tó Totó, 19 anos, louro, olhos azuis, ténis "Nike" roto, pólo "Ralph Lauren" roto, guardava um frasco de perfume "Tommy" que pela actual falta de uso tinha destilado e era agora o companheiro nas horas amargas deste nosso novo amigo. O Tó Totó era apelidado assim pelos "colegas" devido às suas origens. De facto, o Tó Totó provinha de uma família bem na vida quer a nível familiar, quer mesmo a nível social. O seu pai era um importante médico especialista na sede de concelho, era actualmente o chefe de uma importante instituição de saúde privada que fazia uma data de dinheiro com o pessoal acidentado que recebia os prémios dos seguros, sendo que tinha como património pessoal: quatro carros, uma moto, um iate, uma secretária "boa" e uma colecção de fotografias onde emparceirava junto a figuras como Champallimaud, Jorge de Mello, Henrique Amorim e outros "cromos" da alta finança que eram os seus ídolos (mas que ele dizia erradamente que eram seus fãs (ou talvez isso indiciasse uma ambição de um futuro ainda mais risonho que o presente). A mãe tinha conhecido o pai (do Tó Totó) numa consulta da sua especialidade (ele era ginecologista) quando ele ainda era novo na cidade, acabado de vir da licenciatura. Ela era actualmente directora de uma das escolas secundárias, a Escola Secundária gANDAbRANC7, depois de uns quantos anos a leccionar Português nessa escola, mantendo ainda uma relação extra-conjugal na época baixa do turismo com o famoso gigolo do concelho, o Z.Z.C., relação essa paga a peso de ouro (e de BMW ...). No meio de toda estas ascensionais carreiras profissionais, o Tó Tótó foi crescendo num amontoado de brinquedos, jogos, vídeos e outras bugigangas que os pais compravam para manter o puto sossegado e assim se poderem concentrar nas suas carreiras. Foi assim que na escola o Tó Tótó se juntou ao pessoal que era considerado rufia. O Tó Tótó juntou-se a eles, pois no meio da sua candura social (desde pequeno que ficava trancado em casa com a empregada, só saindo para a escola, e se fosse a outros sítios tinha que ir com a empregada, que não o deixava ir socializar com outras crianças, enquanto lavava a "roupa suja" dos patrões com a empregada do talho), pensou que aqueles fossem jovens na sua condição. Contudo, estes tinham crescido em ambientes provocados pela ostracização da sociedade por certos grupos étnicos e económicos. Aqueles jovens não planeavam fazer a vingança através do estudo e conquista dos lugares cimeiros do meio natural dos seus opressores, mas sim através efeito imediato do choque e violência que o crime encerra, método que perdura há séculos, e que portanto, nunca lhes iria servir para mudar as coisas a seu favor. Estes jovens de quem o Tó Totó se aproximou, agiam como que em gang, sujeitando assim o Tó Totó a rituais de iniciação como beber um metro de cerveja de seguida, pregar um soco na empregada mais velha da escola e furar a carroçaria de todos os carros dos professores, incluindo o da sua mãe (isto passa-se no secundário, pois o Tó Totó fez o ensino básico em instituições privadas). O Tó Totó fez tudo o que lhe pediram, sendo que estava sempre a superar esses pedidos para provar que era capaz de pertencer ao grupo. Assim, quando eles se punham a beber cervejas, o Tó Totó punha-se a beber Mules, quando davam porrada numa professora, o Tó Totó dava porrada na directora, que por sinal era sua mãe. Acontece que o grupo decidiu experimentar substâncias ilícitas aos olhos da lei, o Tó Totó decidiu experimentar algo mais pesado, ficando "cliente" desde aí. A maneira de conseguir dinheiro para o vício do Tó Totó era pura e simplesmente pedir dinheiro aos pais, indo até dormir a casa quando chovia e o telhado da habitação colectiva em que estes nossos amigos se encontravam não dava para as encomendas (o Tó Totó até já tinha desabafado com os pais e falado em desintoxicação, o que estes responderam afirmativamente, dizendo-lhe a seguir que ia ganhar um pónei pelos anos e outro pelo Natal). O sexto era o Lelo. O Lelo tinha 20 anos, era igual ao "cigano-padrão" só que era um pouco mais burro. Pode-se acusar o Lelo de falta de inteligência, pois durante toda a sua vida ouviu os pais a dizer-lhe: - Ai moço dum cabrão! Na mexas nesses sacos senão levas um camasso de porrada que vais dar à Roménia! - , o pior é que a curiosidade matou o gato, e neste caso lixou o cigano que foi mexer nos sacos de cocaína que os pais ofereciam às donas de casa cinquentonas que iam comprar peúgas na venda junto ao mercado municipal. Apesar deste infortúnio, e mesmo tendo uma mentalidade menos rápida que os outros ciganos, o Lelo conseguiu satisfazer o vício através do seu espírito cigano, ou seja, a maneira que ele tinha de conseguir dinheiro para o produto era comprando ao Dread as coisas que este roubava e vendendo-as a um preço mais alto. O último era o Pinky. O Pinky tinha 21 anos, pele artificialmente rosada e imberbe, unhas limadas e outros berloques de imagem possíveis apesar da precariedade da sua situação. Está bom de ver que o Pinky era o gay do grupo. Desde novo que assumia essas tendências, frequentando desde essa altura os sítios que os homossexuais frequentavam na sede de concelho. Os pais, um ex-comando que esteve no massacre de Wiryamu e a mãe, uma ex-noviça, mal se aperceberam das preferências do filho expulsaram-no de casa, deserdando-o ao mesmo tempo. O Pinky teve de se prostituir, o que até não o desgostou, passando a cobrir uma das faltas de profissionais na sede de concelho. Foi numa das horas de trabalho que o Pinky conheceu a sua actual perdição (além da já referida). Estava a "oralizar" com um cliente quando este espetou-lhe no cu uma seringa que tinha encontrado na rua quando ia ter com o Pinky, pensando dar-lhe mais prazer. O Pinky achou aquela sensação maravilhosa e passou a pedir a todos os clientes que trouxessem aquele portento. Pouco bastou para cair nas malhas da droga, passando agora a morar com todos estes nossos novos amigos. A maneira que o Pinky tem de conseguir dinheiro para a droga continua a ser a prostituição, apesar dos restantes companheiros de profissão não o deixarem trabalhar em casa. O Pinky no momento em que encontraram BCM pela primeira vez estava mudo pois tinha engolido muita substância ilícita que não droga ...

    BCM, como já foi dito atrás, engraçou com todos eles, e estes vendo a situação de BCM, ofereceram-lhe pousada naquela cabana. BCM retribui-lhes assegurando todas as tarefas de manutenção da casa e do vício. Assim, enquanto os agarrados iam trabalhar para o vício, BCM cortava limões, lavava colheres, ia à farmácia trocar os kits de seringas, preparava as doses, cozinhava o jantar (normalmente restos que a senhora Baldé, a vizinha do lado, lhe oferecia), lavava os elásticos, levava os piolhos a passear e outros afazeres mais, estando normalmente tudo pronto quando ao fundo do bairro se ouvia a alegre cantoria "Eu vou, eu vou. Injectar-me agora eu vou". Entravam em casa e depois de comerem uma fatia de pão bolorento, iam-se injectar. Todos injectavam-se nos sítios normais à excepção do Usmininu, que injectava-se no lábio inferior. Convidaram muitas vezes BCM a experimentar, mas esta recusou, pois desde pequena que tinha horror a agulhas.

    Esta tranquilidade e aparência de BCM e os seus amigos chegou aos ouvidos de B.M. através de um parente seu que tinha contactos com alguns habitantes do bairro. B.M. sabendo que BCM estava bem e recomendava-se, começou a pensar num estratagema para pô-la de lado de vez, para assim não perigar o seu futuro com o senhor U.D.P. . Através da sua mente aleivosa, engendrou algo para destruir BCM. Sabendo da paixão de BCM por maçãs, decidiu usar um destes frutos e envolvê-lo numa pasta composta por heroína, cocaína, morfina e mescalina entre outros estupefacientes. Em seguida, pediu a esse seu parente que fizesse chegar a maçã a BCM, pois conhecia a actual dieta alimentar desta e sabia que não resistiria a uma maçã.

    O parente de B.M. através dos seus contactos dentro do bairro, fez com que a dita maçã fosse estrategicamente colocada no lixo da senhora Baldé. A maçã reluzia no amontoado de fezes e plásticos ultra-usados que rodeavam toda a traseira da cabana da emigrante guineense, sendo que BCM mal reparou nela pediu logo à vizinha para ficar com ela. Logo que ficou na posse dela, entrou dentro da sua cabana, sentou-se num caixote de cerveja que servia como único banco da habitação e deu uma grande dentada na maçã. No momento seguinte, tinha caído para o lado.

    Os agarrados quando chegaram a casa, ficaram mortificados (não, não começou uma overdose em grupo ...) ao ver o seu anjo do lar, a sua fada-madrinha prostrada no chão, desatando a chorar e a gritar, o que serviu para atrair a população do bairro até à cabana. Todos se surpreenderam com o que tinha acontecido e indagava-se o que teria provocado aquele desmaio que não parecia ter fim. Nisto, o Mata-ratos, mendigo profissional que ao longo dos 25 anos de carreira poupara para comprar umas chapas de zinco usadinhas em folha, detectou a presença da dita maçã já mordida por trás da cabeça de BCM. Ao pegarem na maçã, toda a gente percebeu que ela estava sob o efeito de coma tóxica, algo provocado pela ingestão súbita de uma grande quantidade de drogas ao mesmo tempo8. A seguir a esta descoberta, decidiu-se logo chamar um médico para a acudir a rapariga a quem todos estimavam, à excepção das mulheres mais ciumentas do bairro. Mas esta intenção tão depressa foi como veio, pois a presença de um médico num caso destes iria arrastar consigo a presença da polícia e de outras forças que agissem em cumprimento da lei, esse procedimento tão pouco em voga no bairro onde se passa a acção. Assim, deixaram-na ficar, prostrada no chão entregue aos sete amigos, que entraram em grande depressão. O Dread começou a roubar agentes da autoridade, o Hong-Kong começou a comer a carne dos cães que o Usmininu matava para fazer os tambores, o Riscos e Rabiscos começou a fazer imitações d’O Grito de Edvard Munch em todos os carros que estacionava, quer pagassem ou não, o Usmininu começou a tocar Jambé durante todo o dia (isto era o que mais chateava os agarrados), o Tó Totó voltou a ir viver com os pais, o Lelo já não fazia uma grande margem de lucro nos seus negócios e o Pinky, aproveitando o desnorte dos seus colegas, começou a enrabá-los a todos, apesar da sua amargura em perder a segunda presença feminina em casa.

    Com o chão a acumular seringas, garfos a fazerem de colher e os cus doridos, o Riscos e Rabiscos, o Dread e o Lelo lembraram-se de algo que poderia salvar BCM da overdose eterna. Aliás, não se lembraram de algo, mas sim de alguém, mais propriamente o P.E. . O P.E. era o filho ilustre do bairro, devido ao facto de ser o maior traficante de droga e de brancas no concelho, sendo que actualmente estava em viagem de negócios no sul de Espanha. Contudo, segundo informações de um dos seus familiares, ele estaria de volta dentro de dois ou três dias. Os agarrados aliviaram-se pois viam BCM poder finalmente despertar daquela letargia de origem criminosa, pois o P.E. era a pessoa mais capaz em desenrasque de situações daquelas em toda a região.

    Passados dois dias, o P.E. voltou. Tinha 40 anos e aspecto disso também. Cabelo comprido à marau, camisa de seda semi-aberta, botas de cabedal com a ponta em bico, casaco também de cabedal, cabelo penteado com gel para trás, uma tatuagem a dizer "Angola, não estive lá mas as tatuagens são fixes", bigode, carro desportivo rebaixado, com ailerons, escape livre e vidros fumados, sendo solteiro. Mal se deparou com o caso apresentado pelos agarrados, prestigiou-se logo a ajudá-los, pois eles eram dos seus melhores clientes. Assim que entrou dentro da cabana dos agarrados para ver BCM viu logo ali que tinha possibilidade para fazer negócio. Examinou-a, apercebeu-se das suas formas e começou a engendrar esquemas futuros, Em seguida, mandou um dos seus acólitos, indivíduos que normalmente seguiam junto a ele e que pareciam sofrer de miopia, perturbações oculares constantes provocadas pelo sol, distrofia muscular e surdez, ir buscar um meio litro de adrenalina ao seu kit de assistência a empregados e clientes. Assim que o acólito chegou com o meio litro de adrenalina e entregou-o ao P.E., que pegou nele e inseriu-o numa seringa para tratar touros de lide, rasgando depois ao meio a blusa de BCM, causando a indignação imediata por parte dos agarrados e o deleite dos acólitos perante tão voluptuoso espectáculo. O P.E. tranquilizou-os a todos, contentes e descontentes, dizendo que era necessário fazer aquilo de modo a poder introduzir a seringa na maneira certa numa dada artéria junto ao coração. Ao ouvirem isto, os agarrados assustaram-se pois pensaram logo nos mais negros desfechos para aquela situação. No entanto, lembraram-se que o bom nome do P.E. na zona se devia a qualidades e não a acidentes, deixando-o prosseguir com esta terapia de choque (para os agarrados).

    Assim, o P.E. introduziu a adrenalina na seringa, arregaçou as mangas, fez um pequeno esguincho com a seringa, ergueu o braço bem lá no alto com a seringa bem agarrada na mão e num gesto ciclónico cravou a seringa no coração da BCM.

    De súbito, BCM ergue-se num só salto e, inconscientemente, abraçou logo P.E. . BCM apesar de estar já despertada, não estava ainda a 100% das suas capacidades mentais, e P.E. sabia disso, logo aproveitando-se da situação ao perguntar-lhe seria queria viver com ela e no estrangeiro, ao que ela acedeu de pronto.

    Da última vez que ouvi falar de BCM, ela era uma prostituta consumida pela heroína que se abanava numa casa de passe de Marbella. Dos agarrados, o Tó Totó, o Riscos e Rabiscos, o Usmininu e o Pinky morreram de overdose, enquanto o Dread, o Hong Kong e o Lelo foram assasinados, enquanto o P.E. era agora uma das figuras mais respeitadas e ricas do concelho, ao abrir um centro de desintoxicação para toxicodependentes.

Vale da Arrancada, 31 de Agosto de 2000

FIM

Legendas:

1- O autor não tem conhecimento de outras características que possam interessar às leitoras; 2- As mentes porcas podem ficar descansadas que não é nada disso ...; 3- Querem nomes? Para quê nomes? No fundo o nome é um carimbo que nos põem no início e que não conseguimos lavar no resto da nossa vida. Mas descansem que o nome da merceeira é mais ou menos normal; 4- Não, nomes não. Contra uma eterna marcação limitativa do ser sou!!!; 5- Está bom de ver que é o nosso personagem de que estamos a falar e não de uma possível força de extrema-esquerda, pois com o que já tinha amealhado, a senhora B.M., não lhe apetecia muito fazer divisões; 6- Eis um bom exemplo da emancipação das mulheres ...; 7- Uma pequena nota histórica: gANDAbRANC, foi o principal impulsionador do concelho, promovendo-o a capital do distrito quando ocupou as pastas da Administração Interna aquando da célebre Comuna de Lisboa; ganhando assim o respeito eterno dos habitantes do concelho pela sua figura, figurando assim o seu nome nos sítios mais importantes da cidade: biblioteca, escola, praça, estação de correios, grupo intelectualóide de discussão sobre nada e bordel; 8- Esta patologia acaba de ser inventada pelo autor do texto (espera-se o prémio Nobel da medicina para breve).


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